Sobre reações diante do indesejável. As perdas e prejuízos e como o Covid afeta a vida das pessoas.
Tem um livro do Tolstói chamado Anna Karénina. A primeira frase do livro está entre as melhores e mais importantes já publicadas na literatura universal. “Todas as famílias felizes são iguais, cada família infeliz, é infeliz a sua maneira”.
O fato é que ninguém quer que o indesejável bata em sua porta. Mas quando bate, vai mexer com sua vida, quer queira, quer não.
Não consigo deixar de fazer uma analogia com a experiência que eu tive no Hospital de Câncer. Poderia citar fácil uma meia dúzia de casos em que o indesejável pulou com os dois pés no peito de algumas famílias, a minha inclusive.
A primeira reação é negação. “Não é tudo isso não”, “Esse médico está louco”…
Aí o tempo passa e você percebe que não tem muita escolha a não ser olhar na cara do indesejável e tentar fazer o seu melhor.
Aquilo que você perde só tem importância quando você acha que a situação não pode piorar. Quando piora, você deseja de coração voltar à fase anterior.
Uma vez, conversando com um pai, ele estava lamentando a amputação da perna do filho, mas não a amputação em si, estava triste porque imaginou que se tivesse feito antes, a amputação poderia ser menos agressiva (a amputação foi perto da cabeça do fêmur, perdeu a perna toda), se fosse perto do joelho, dizia ele, uma prótese daria uma mobilidade melhor etc etc etc. Mas ele demorou, não queria, tentou tratamentos alternativos… No final, não tinha mais como adiar e a solução era tirar tudo. Sinceramente, nem sei se ele estava certo ou se não tinha muito o que fazer mesmo, o fato é que antes ele não queria amputar nada, depois subiria de joelhos as escadarias da Igreja da Penha para ver seu filho com uma prótese na altura do joelho.
Mas por que estou falando isso? Penso que, no caso do Covid, a amputação é inevitável. As ações tomadas pelas lideranças e especialistas, junto com a forma que a população vai acatar isso tudo, é que vão determinar se será na altura do joelho ou não.
Isso inclui tudo, salvar vidas, cuidar da economia e, claro, não deixar o sistema de saúde entrar em colapso.
Infelizmente o país está confuso, de um lado pessoas que minimizam o problema e querem um basta na quarentena para não prejudicar a economia, do outro pessoas que preferem seguir as orientações de prevenção para evitar um mal maior, mesmo sabendo que isso terá um custo. Qual o melhor caminho?
Independente da preferência de cada um diante desse impasse, a única certeza que eu tenho é que a esmagadora maioria não possui um mínimo de informação necessária para contribuir intelectualmente com essa decisão.
O melhor que se pode fazer é ter plena consciência da própria ignorância para esse assunto. Parece pouca coisa, mas não é.
Quem sabe que não sabe, não cria ruído e não atrapalha àqueles aptos a fazer uso do conhecimento específico disponível para direcionar as ações. Só eles estão a par das infinitas variáveis e suas possibilidades. Conhecem a estrutura (financeira, pessoal e material), disponível para lidar com isso, bem como toda a deficiência da saúde pública e demais problemas sociais do nosso país.
Então a pergunta nunca foi “qual” mas “nas mãos de quem” eu devo apostar e confiar para escolher e tomar essa e outras decisões.
Ciente da minha ignorância no assunto, procuro contribuir apoiando àqueles que, baseados em ciência, estudos e informações reais, têm uma mínima condição de apontar uma luz e achar um caminho para isso tudo.
De preferência, na altura do joelho.
Orlandeli
22/04/2020